Expedição Deserto de Cristal



Quatro anos depois de sua primeira incursão no manto de gelo, o Brasil retornou ao platô antártico. Se a estréia no interior do continente só havia sido possível graças à Primera Expedición Científica al Polo Sur realizada pelo Chile no final de 2004, nesta segunda missão a situação foi bem diferente. Orçada em R$ 700 mil, a expedição Deserto de Cristal, organizada pelo Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (NUPAC, atual Centro Polar e Climático), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi a primeira missão autônoma brasileira ao interior do continente austral.



A equipe era composta por oito cientistas: Jefferson Cardia Simões (o líder), Francisco Eliseu Aquino, Ulisses Franz Bremer, Luiz Fernando Magalhães Reis e Rosemary Vieira, primeira mulher brasileira a participar de uma expedição ao interior da Antártica, todos da UFRGS, Heitor Evangelista da Silva e Marcio Cataldo da Silva, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), e o chileno Marcelo Arévalo, da Universidade de Magallanes, que era também o alpinista do grupo. 

Partindo de Punta Arenas (Chile), os pesquisadores chegaram ao continente antártico em 03/12/2008, junto com três toneladas de equipamentos –instrumentos científicos, duas motos de neve Yamaha, combustível, alimentação, barracas, banheiro (em consonância com o tratado de Madri, todos os dejetos produzidos foram levados de volta à América do Sul) etc. Tal como em 2004, a comitiva viajou a bordo de uma aeronave Il-76 da Air Almaty, do Cazaquistão, fretado pela empresa ALE (Antarctic Logistics and Expeditions, na época denominada ANI – Antarctic Network International) * e aterrissou no aeródromo de Patriot Hills, situado junto à cordilheira Heritage dos montes Ellsworth.




Localizado nas coordenadas 80°18′S, 81°22′O, a 920 m de altitude, o campo de pouso fica a cerca de 2.100 km da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF) e a 1.083 km do polo sul geográfico, em linha reta. Nesse local, onde a espessura do gelo tem cerca de 700 m e onde o sol não se põe naquela época do ano, foi montado o acampamento-base da expedição.




Uma estação de amostragem do ar foi instalada pela UERJ, a cerca de 15 quilômetros do acampamento nos montes Patriot. Voltado para o estudo da relação atmosfera-gelo, o equipamento efetuou o monitoramento da composição atmosférica, para comparação com os elementos químicos que se precipitaram nas camadas de neve ao longo do tempo. A estação ainda fez uma coleta dos microorganismos (fungos, bactérias e esporos) que pudessem estar em suspensão no ar.




A parte mais importante da missão consistiu na exploração da região entre os montes Johns e Woolard, a aproximadamente 250 km do acampamento-base. Nas coordenadas 79º 55' 28'' S, 94º 23' 18'' W, a 2.115 m de altitude, foi feita a escavação de um testemunho de gelo (ice core, coluna cilíndrica de gelo obtida pela perfuração de uma geleira) com 95 m, equivalente a 250 anos de história atmosférica – ao todo, cerca de 500 kg de ice cores foram retirados do local, material que foi enviado para análise pela Universidade do Maine **. Foi utilizada uma sonda elétrica perfuradora de gelo de 3 polegadas, construída a mão na Suíça, única na América Latina (http://www.icedrill.ch/index.html).




Tal como o transporte intercontinental, os grandes deslocamentos no interior do continente também são providos pela ALE, mas sempre dependem das condições meteorológicas. Os quatro cientistas (três brasileiros e um chileno) foram conduzidos em um avião de Havilland Canada DHC-6 Twin Otter da empresa canadense Kenn Borek Air e permaneceram 16 dias em três barracas. Consta que a região só havia sido visitada anteriormente uma vez, pelos EUA, em 1961, e foi escolhida justamente por seu isolamento, importante para garantir que as partículas presentes no gelo tenham se depositado ali diretamente da alta atmosfera, sem contaminação do ambiente próximo. 




Também foram coletadas amostras de rochas e de solo nas imediações do acampamento-base, nos montes Patriot. Encerrados os trabalhos, no dia 13/01/2009 os pesquisadores embarcaram no Ilyushin Il-76TD com destino a Punta Arenas. 

A expedição Deserto de Cristal foi uma atividade importante na participação brasileira no 4º Ano Polar Internacional –grande esforço conjunto que envolveu dezenas de países e milhares de cientistas no estudo das zonas de altas latitudes. Por ter sido planejada e comandada por brasileiros, a expedição foi um marco da exploração polar nacional. No entanto, em 2018 o acesso do país ao interior da Antártida permanecia inteiramente dependente de logística privada estrangeira. Da mesma maneira, as instituições científicas nacionais estavam mal aparelhadas para a análise e processamento do material glaciológico obtido nos trabalhos de campo.


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* A ALE (https://antarctic-logistics.com/) se constitui no elo logístico entre a América do Sul e a área dos montes Ellsworth. Desde 1987, ela vem sendo a responsável por operar os únicos aeródromos passíveis de receber aviões com rodas em toda a região. Essas pistas são feitas sobre o gelo azul (blue ice), um tipo de superfície que geralmente ocorre em áreas sem precipitação positiva de neve, e que, devido à sua dureza, é ideal para receber as pesadas aeronaves que provêm do continente. Desde 2010 a ALE utliliza a pista de Union Glacier, mas na época da expedição Deserto de Cristal, a empresa norte americana ainda se servia do campo de aterrissagem de Patriot Hills, localizado a menos de 100 km de distância daquele e hoje mantido como alternativa de segurança.  


** Durante a expedição, foi anunciada a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT da Criosfera), com sede no Instituto de Geociências da UFRGS. Composto por uma rede de nove laboratórios, o Instituto se propõe a integrar a comunidade científica brasileira voltada ao estudo do papel do permafrost, das geleiras, do manto de gelo e do gelo marinho na Antártida e nos Andes.

No entanto, o avanço representado pela fundação do INCT da Criosfera não foi acompanhado de ações mais efetivas tendentes a ajudar na consolidação institucional da ciência polar brasileira. Previa-se na época a construção de uma sede para o Centro Polar e Climático (CPC) da UFRGS. Há algum tempo também se planeja o estabelecimento do Laboratório Nacional de Testemunhos de Gelo, dotado de salas frias e limpas adequadas para a análise, processamento e armazenamento dos ice cores e do firn (material intermediário entre neve e gelo) coletados pelos glaciologistas brasileiros, mas ambos os projetos até hoje não se viabilizaram. 

Em 2017 a análise físico-química dos testemunhos de gelo continuava sendo realizada fora do Brasil, e mesmo a estocagem das amostras depois da análise apresenta dificuldades. O CPC possui uma câmara fria, mas o fornecimento de energia não é plenamente confiável, e, desde 2013, optou-se por manter o material estocado em um centro de armazenamento pertencente a uma empresa de logística, por um aluguel mensal de cerca de R$ 500. Nesse armazém foram mantidas amostras das expedições de 2004 e de 2009 (Deserto de Cristal) até abril de 2017, quando o local incendiou. Afortunadamente, a maior parte do material foi salva porque havia sido separado para uma reportagem jornalística veiculada dias antes do sinistro (http://www.bemparana.com.br/noticia/500540/gelo-de-pesquisadores-brasileiros-pega-fogo e https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/04/gelo-antartico-de-pesquisa-e-armazenado-em-frigorifico-ao-lado-de-caixas-de-pizza-e-frango-9767075.html).




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Fontes principais:



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